A ausência da memória e a presença do amor
- nayamotam
- há 6 dias
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Em algum momento, muitos de nós percebemos uma mudança sutil — e depois não tão sutil — na interação com nossos pais. A conversa longa que costumava se estender pela tarde chega ao fim antes do esperado. O sorriso, que antes era imediato, agora demora a vir. As lembranças compartilhadas, que teciam a história da família, começam a se apagar, desvanecendo-se como fotos antigas. Uma palavra fica na "ponta da língua" mas não sai, repetidas vezes. Esses esquecimentos vão se tornando mais frequentes, e a sensação é de que estamos perdendo um pouco daquela pessoa a cada dia.
É comum, e profundamente humano, sentir um turbilhão de emoções diante disso: frustração, impotência e até culpa. Quando um “não lembro” substitui uma história centenas de vezes contada, ou quando a memória parece trair quem sempre foi sua fortaleza, pode parecer que o chão desaparece. Esse é um dos traços mais delicados do envelhecimento, especialmente quando vem associado a demências, como a Doença de Alzheimer.
Mas e se cada “não lembro” não for apenas uma perda, mas um convite? Um convite para reinventar o cuidado, a conexão e a própria linguagem do amor. Quando a memória de curto prazo falha e os detalhes se esvaem, a estratégia de comunicação precisa mudar. A tentativa de corrigir, insistir no “lembra?” ou reviver o passado à força pode gerar mais ansiedade e afastamento. A palavra que não vem, a memória que escapa — tudo isso pede uma nova abordagem.
A grande virada está em entender que, mesmo com os declínios cognitivos, os canais emocionais permanecem abertos. O afeto se torna o recurso mais poderoso de comunicação. Já não se trata de ouvir para coletar fatos, mas para captar a emoção por trás do silêncio ou da repetição. É oferecer um abraço prolongado quando as palavras se perdem, pois o toque gentil fala uma língua que o esquecimento não apaga. É criar pequenos rituais — o mesmo café, a mesma música ao entardecer — que servem como âncoras no presente, oferecendo segurança quando a mente parece esvanecer.
Às vezes, a conexão mais profunda acontece no silêncio compartilhado. Sentar-se juntos, olhar pela janela, sentir o sol no rosto. Não é preciso forçar a memória ou buscar a palavra esquecida. Basta estar presente. Nesses momentos, os laços se renovam.
É importante lembrar que essa jornada demanda cuidados psicológicos extensivos — e isso inclui todos ao redor. Cuidar de quem cuida não é um extra, é parte fundamental. A sobrecarga de testemunhar os esquecimentos, a tristeza quando a memória parece obscurecida, tudo isso é real e precisa de acolhimento.
Lidar com o Alzheimer ou outras formas de demência na família é, no fundo, uma jornada de reinvenção contínua. É um caminho que exige paciência, alternativas e muita compaixão — por nossos pais e por nós mesmos. Não se trata de negar a dor das perdas, mas de encontrar significado e beleza nas novas possibilidades do relacionamento. A memória pode se esvanecer, mas o afeto registrado no momento presente deixa uma marca duradoura no que seu familiar sente. Quando a palavra fica na ponta da língua e não sai, talvez a resposta não esteja no vocabulário, mas no aperto de mão, no olhar tranquilo, na presença que diz, sem palavras: “Estou aqui. Você é amado. Este momento é nosso.”
Com cuidado, mesmo quando a memória se retrai, o afeto pode se expandir, dia a dia.







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